As festas nacionais armênias carregam significados que vão muito além do que vemos nos dias de hoje. Ao longo dos séculos, esses feriados se transformaram, assumindo novos significados e modos com a chegada do cristianismo, mas sem perder as raízes originais que povoam o imaginário do povo armênio! Essas celebrações resistiram ao tempo e à mudança de crenças; elas continuam vivas por meio da cultura milenar e popular armênia, dos rituais e, claro, das tradições familiares.
Hoje em dia, mesmo que muito desses feriados sejam celebrados sob um viés cristão, suas origens remontam aos tempos pagãos. Neste texto, vamos conhecer algumas das principais festas nacionais armênias, que atravessaram milênios, migrando do paganismo para o cristianismo, mas sem perder sua essência cultural!
Zatik (Páscoa) e a Deusa Anahit
No mundo cristão, a Páscoa representa a ressurreição de Jesus Cristo. Em armênio, a celebração é chamada de Zatik, termo que deriva de “zatel”, que significa “separar-se” – neste caso, do pecado. Portanto, esse é um dia sagrado que simboliza o renascimento espiritual e a libertação do mal.
Mas, muito antes da era cristã, os armênios já celebravam esta data como um festival da primavera, ligado à fertilidade da terra. Essa comemoração era dedicada à deusa Anahit, considerada a protetora da fertilidade e uma das principais divindades femininas do panteão armênio.
Estátua da deusa Anahit, que pertence ao Museu Britânico e que atualmente está exposta no Museu de História da Armênia
A Lenda da Deusa Anahit e o Pássaro de Fogo
Segundo a tradição armênia, após o dilúvio, os arianos que chegaram ao vale do Ararat encontraram a natureza acinzentada e sem vida. Para restaurar as cores do mundo, um homem chamado Man ofereceu sacrifícios à deusa Anahit; ela respondeu que somente o mítico Pássaro de Fogo poderia devolver a vitalidade ao mundo, espalhando cores ao cantar e ao botar ovos coloridos.
Man libertou o pássaro do reino subterrâneo, e ao retornar, ele cantou, coloriu o mundo e encheu o vale com ovos mágicos. A deusa Anahit então espalhou esses ovos pela região e ordenou que o pássaro fizesse ninho no Monte Ararat para manter vivas as cores da terra.
Desde então, a Páscoa passou a ser celebrada como a renovação da vida e a chegada da primavera. Os ovos pintados simbolizavam a fertilidade e a alegria da estação – e eram coloridos de forma vibrante, diferentemente do costume cristão – de muitos lugares do mundo – de pintá-los de vermelho.
Ovos comuns na Páscoa na Armênia
A Virgem Maria e a Deusa Anahit
Outra festa cristã armênia muito celebrada é a Dormição da Mãe de Deus, também conhecida como a bênção das uvas. A tradição conta que, durante 12 anos após a crucificação de Jesus, Maria continuamente visitava seu túmulo, até que foi informada por um anjo sobre sua ascensão aos céus.
Com a adoção do cristianismo, as características da deusa Anahit – feminilidade, maternidade, fertilidade – foram atribuídas à Virgem Maria. Os antigos templos de Anahit tornaram-se igrejas marianas e as festas pagãs foram absorvidas e ressignificadas pela nova fé.
Essa bênção das uvas também fazia parte do Navasard, o Ano Novo armênio; era um ritual de agradecimento pelas colheitas. Sempre, a primeira fruta da videira era oferecida à deusa Anahit como sinal de respeito. Já nos dias atuais, apenas as uvas são abençoadas na igreja, porque delas também se faz o vinho sagrado utilizado nas liturgias.
Bênção das uvas, uma tradição armênia
O Navasard era comemorado no início de agosto e marcava o início da colheita. Famílias se reuniam nos campos para rituais de gratidão, com danças, músicas e festas comunitárias. Era um dos feriados mais importantes do calendário pagão, celebrando a abundância, a natureza e a unidade do povo armênio.
Imagem retratando o Navasard, o Ano Novo armênio
Vardavar e a Deusa Astghik
Hoje em dia, o Vardavar é celebrado como a festa da Transfiguração de Cristo, sempre comemorada no 98º dia após a Páscoa. Durante este divertido feriado, é tradição as pessoas se molharem com baldes d’água, soltar pombas e celebrar com muita alegria, todos esses símbolos que remetem à história da Arca de Noé e à purificação.
Porém, antes do cristianismo, Vardavar era um festival pagão em homenagem à deusa do amor e da beleza, Astghik. Nascida da espuma do mar, a lenda conta que onde ela passava, ela deixava rastros de sangue que se transformavam em rosas. O nome da festa vem da palavra “vard”, que significa rosa em armênio.
Por falar em Astghik, ela era amada pelo deus do trovão, Vahagn. Em momento mítico, ela é sequestrada por uma criatura do submundo, mergulhando o mundo na tristeza e feiura. Quando Vahagn a resgata, ele percorre a Armênia espalhando água de rosas e restaurando a beleza e o amor.
Durante o Vardavar, os armênios homenageavam Astghik jogando água uns nos outros, decorando com rosas e celebrando a beleza e o amor. Além disso, também era um dia de rituais relacionados à água, um elemento considerado sagrado e símbolo de pureza.
Imagem retratando a deusa Astghik
Trndez: Festival do Fogo
Celebrado 40 dias após o Natal, o Trndez é um feriado cristão dedicado à luz e ao amor de Deus. Mas, mais uma vez, suas origens são pagãs: era uma festa do fogo, elemento considerado uma forma terrena do sol, o qual os armênios cultuavam.
Durante Trndez, casais e jovens saltavam sobre fogueiras para garantir sorte e fertilidade. Também se faziam adivinhações por meio da fumaça, buscando prever o futuro ou descobrir a origem de um possível casamento. Pratos tradicionais eram preparados e levados ao redor da fogueira como oferendas.
Armênios celebrando o Trndez
Tsakhkazard (ou Tsarzardar): um Culto à Natureza
Celebrado uma semana antes da Páscoa, o Tsakhkazard simboliza a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém. Na celebração, ramos de salgueiro ou oliveira são abençoados e levados para casa como sinal de proteção e fartura.
Mas, antes do cristianismo, esse festival era uma celebração do renascimento da natureza e da fertilidade das árvores. Os antigos armênios decoravam árvores sagradas com frutas, ovos coloridos e fitas, pedindo chuva e prosperidade.
Tsakhkazard celebrado na Armênia; ao fundo, o templo pagão de Garni
Conclusão
As festas nacionais da Armênia são testemunhos vivos de uma cultura milenar! As antigas tradições pagãs foram assimiladas pelo cristianismo, mas muitos costumes – como pintar ovos, molhar-se com água ou saltar sobre fogueiras – continuam a ser praticados até hoje, conectando o presente ao passado!
Mais do que simples datas no calendário, esses feriados celebram a natureza, a fertilidade, o amor, a espiritualidade e a união do povo armênio com sua terra e suas divindades – sejam elas pagãs ou cristãs!
Viva a história Armênia!